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   viúvos vi vedo 

giovana mastromauro e laura cionci

projeto contemplado pelo fundo de

investimento de Campinas - Secretaria de cultura (FICC)

                                 viúvos - vi vedo

                         vídeo, fotografia, instalação

                              7 fev a 7 mar de 2019

        Museu de Arte Contemporânea de Campinas MACC                                                                     

Video da abertura  da exposição MACC - 7/2/19

                         por Pedro Spagnol

 

Textos Curatoriais: Marcelo Beso, Leonardo Caffo, Christian Caliandro e Azzurra Muzzonigro

 

 

O muito que vi aqui por Marcelo Beso

 

Falar de Viúvos - Vi Vedo de Giovana Mastromauro e Laura Cionci, no contexto cultural atual definido por Giulio Ferroni como “evaporação de uma cultura crítica”, implica termos que recorrer à sensibilidade dos grandes que nos precederam, em especial aqueles que sabiam que “toda arte séria é um ato crítico” (cf. George Steiner), como foi o caso de Rainer Maria Rilke, para quem “uma obra de arte é boa quando nasceu de uma necessidade”.

Pois esta obra nasce de uma ideia original da artista brasileira Giovana Mastromauro que, em 2013, coletou depoimentos de sua única avó, idosa e viúva, para saber um pouco mais sobre o avô que não conheceu. Este caráter de necessidade espontânea – ouvir relatos sobre a vida de seus avós – já comparecia em seus trabalhos anteriores sobre a memória e a lembrança, como nos video-poemas de 2012 (Vida Muda, Voz) ou no documentário Banzo, de 2013 (em parceria com Natasha Marzliak), em que investigou sentimentos amorosos baseados na dor da saudade (“banzo” significa a dor da separação entre negros africanos escravizados no Brasil).

Em viagem para Roma em 2014, Giovana conhece a artista italiana Laura Cionci e juntas começam a dar vida a Viúvos - Vi Vedo com um detalhe fundamental: tratar da viuvez apenas por meio de relatos masculinos. Sensivelmente empenhadas em suas criações, ante os relatos dos viúvos as artistas deixaram que as paixões súbitas e seus encontros eternos ecoassem com liberdade, evitando que o amor e seus mistérios se confundissem com as “desrazões” dos casais ou com suas demandas racionais em sociedade. Esta consciência universal da sensibilidade humana, maior do que a militância frente à realidade e suas injustiças (individuais ou coletivas) é um resultado inesperado nesta obra, quando nos apercebemos que triunfa o sentimento amoroso aqui onde só haveria sentimentos pesarosos, pesados, perdidos, silenciosos/silenciados.

Certamente crítico, este ponto de vista da viuvez masculina serve de partida para a própria valorização da mulher onde, justamente, parece que elas não mais estão, onde parece haver restado vazio e ausência – como quando comparamos o “papel” feminino com o masculino em uma sociedade patriarcal (bem conhecido por toda a cultura ocidental do “Homem” civilizado). Redefinindo o próprio tema investigado, Viúvos - Vi Vedo resulta na revitalização civil e “ecológica” (ainda nos termos de Ferroni) que carece aos lugares-comuns da arte contemporânea. Não por acaso, esta obra se faz ao longo de anos de experimentação e maturação, entre entrevistas selecionadas e materiais improvisadamente colhidos. Aliás, só assim é possível alcançar discursos ou representações da relação amorosa, sobretudo de outras pessoas, sem ser apenas sentimental ou apenas objetivo: reinventar o “ativismo” usando a espontaneidade, e fazer do afeto um respeito inalienável. Eis a base para a expressão de uma vivência pessoal tão marcante como é a de pessoas viúvas. É como se a viuvez aflorasse como risco inerente ao amor e trouxesse a certeza, por outro lado, de que nunca haverá separação. Se assim é, trata-se de uma grande conquista em nossos dias de hoje, em que as separações vêm e os amores se vão.

Solução poética e profunda para qualquer sociedade atual que, machista e preconceituosa, perde o maravilhoso se entregando à materialidade e à utilidade a todo o custo, desfilando decadência, Viúvos - Vi Vedo permite ao espectador imergir em sua essência, pois quem sente a dor ou a alegria e se emociona frente aos depoimentos o faz como ser humano, não como homem ou mulher: o faz por humanidade, sensibilidade – enfim, por amor. Esta é a chave dramática ofertada aqui, também já ilustrada por outro grande poeta, William Blake: “O excesso de choro ri, o excesso de riso chora”. As artistas não se furtam às contradições da realidade, aos perigos da vida. E que fique bem claro: não ficaram esperando, foram aos homens, deram luz aos Viúvos e, vendo-os como humanos – Vi Vedo! – não como machos que são ou que foram, sentido-os através da força e da fraqueza de seus amores que se foram (e ficaram!), fizeram sua parte permitindo entendimento e cura, ao menos para aqueles capazes de despertar para amar o outro vindo a se tornar a si mesmos plenamente. Esta, porém, é a opinião de um homem que ama incondicionalmente uma mulher...

Em qualquer caso, obrigado Laura e Giovana, mães de nossa sensibilidade vindoura.

Vejo Vocês, seres frágeis por Azzurra Muzzonigro

 

Fragilidade

 

Já aconteceu de você perder o que havia de mais querido no mundo? Para cada um pode ser algo ou alguém diferente: a mulher amada, a mãe, o cão, a casa, o trabalho, mas também a estima, a confiança, o otimismo. Não importa quem ou o quê, nem o motivo da perda, o que me interessa agora é que você se concentre na sensação que essa falta implica em sua vida.

De repente, a fortaleza de certezas na qual você estava entrincheirada desmorona, a torre da qual você julgava as outras fraquezas humanas vai se tornando mais sutil, instável, insegura. Uma vez forte e arrogante você se descobre agora nu e frágil, vidas solitárias e sem voz penduradas em um fio suspenso no vazio da existência.

 

Margem

 

Embora para alguns possa parecer uma perspectiva distante ou remota, talvez não seja bem assim: coloquemos-nos por um momento na pele de um ser humano do futuro, não tão longe, digamos 50 anos a partir de hoje, um homem ocidental de classe média cujo trabalho não fosse mais necessário, por exemplo, porque substituído pela inteligência artificial.

De repente, mesmo aqueles que são fortes hoje podem se achar fracos amanhã, por razões que só podem ser parcialmente controladas. De repente todos podemos nos descobrir parte de uma espécie frágil e marginal e, um dia, até mesmo irrelevante.

E então, talvez, aquela margem para a qual é forçado estar quem não tem voz pode vir a ser um terreno fértil para moldar novos modelos de vida. Modelos baseados na humildade, partindo da consciência dos próprios limites, na empatia, sentindo as injustiças na própria pele, na interconexão, descobrindo-se parte de uma existência plural.

 

Cuidado

 

Talvez a própria chave esteja aqui: em se sentir parte de um mundo que é comum. Não somos mônadas isoladas fechadas e auto-referenciais, mas entidades plurais e relacionais em um contínuo tornar-se. Reconhecer que somos parte do que é vivo nos permite reconhecer formas de interdependência com outras formas de vida. Devemos superar nossa individualidade e “tornar-se ambiente”: abrir espaço e dar voz àquilo que nos une, não àquilo que nos divide. Devemos fugir do fragmento do qual somos prisioneiros e começar a construir pontes, porque, como as mulheres nos ensinam: se vamos nos salvar, o faremos juntos. Acabou o tempo dos heróis solitários, invencíveis e eternos: somos seres frágeis e nesta fragilidade se encontra nosso cuidado e nossa salvação.

Não ser frágil por Leonardo Caffo

 

Homens que não podem ser frágeis, que devem ser fortes. São os anos 60 e Pier Paolo Pasolini diz que a sociedade que muda sem entender que a elite mudou, que o futuro é conceder espaços de autogestão, simplesmente é fadada ao fracasso e ao retorno da direita. O ponto, talvez, é entender o que entendemos por autogestão. Um garoto entrevistado por uma televisão nacional italiana explica porque para ele o sábado e o domingo são o momento de se diferenciar, as escolhas de exagerar na discoteca, de emergir de uma posição que, de segunda a sexta-feira, o constringe a servir seus senhores. É assim que as redes sociais, perenes noites de sábado, mudaram as regras da política, derrubaram os poderoso de antes, trouxeram à luz aquilo que sempre acontece quando se trabalha com o mito das sociedades transparentes: volta o fascismo, volta o passado. A elite, hoje, somos nós, são vocês: indivíduos que pensam ser livres no espaço dilatado do digital, ainda a trabalhar para os senhores em silêncio, gritando a partir das telas do celular: não choram, não riem, mas dizem que choram, que riem. Literalmente, a emoção é congelada.

“No que você está pensando?”, nos pergunta o Facebook há quinze anos: e agora você não pode mais pensar, só pode dizer o que pensou. O que será da fragilidade e do sofrimento quando compartilhar significa apenas compartilhar os sucessos? Devemos mostrar somente onde vencemos, nunca o que nos venceu: o drama que Pasolini havia entendido, e não o ouvimos, é precisamente que os jovens não são fortes o suficiente para merecer a liberdade e os idosos, viúvos de algo como qualquer pessoa que tenha o destino de sobreviver à juventude, não são suficientemente fracos para merecer a dor.

 

Assim a diversidade é nivelada, e morre; é a identidade que retorna prepotente, e como valor, como uma desgraça. No momento em que o sábado à noite é perene, e a revolução do garoto entrevistado na televisão é bloqueada pela falsa ideia de que um clique no telefone pode substituir um lugar selvagem, então surge a imensa segunda-feira: homens fortes no comando do Ocidente disseminam o mito da pureza da força: não se chora, não se sofre, não se grita.

 

Quem descobre a sua fragilidade, é claro, neste ponto deve ser punido: a mulher se torna o sujeito, o homem está condenado à repetição – forte e medíocre, invencível e, portanto, inútil.

A elite, portanto, não é mais a burguesia, dizia Pasolini, mas a classe trabalhadora, aquela que hoje de repente conquistou o direito de falar na web depois de décadas de perspectiva imposta: não merecem a liberdade, Pasolini estava certo, porque com seus votos foram condenados à guerra. Precisamos estar prontos para sofrer antes de pensarmos que estamos prontos para sermos livres. Viúvos da vida, antes que das vidas.

 

Mas o que teria acontecido, esse é o ponto, se o Facebook não tivesse perguntado no que estávamos pensando, mas, mais timidamente, “Pelo quê você está sofrendo?”. Uma vida que sofre, uma vida frágil, é a única vida verdadeiramente livre.

 

Eis a autogestão que Pasolini procurava: treinada para a dor subjetiva, antes que para o prazer universal.

Viúvos – Vi Vedo po Christian Caliandro

 

Com Laura Cionci muitas vezes nos pegamos a falar, desde que nos conhecemos, sobre o feminino, sobre o princípio feminino e o matriarcado. A transformação em direção ao feminino que estamos experimentando, contra todas as aparências, não é de modo algum um conflito (o conflito e o choque são prerrogativas masculinas): é, antes, um deslizamento; a criação de um plano diferente de existência.

A maneira que as mulheres têm, por exemplo, para construir, manter, proteger. A decisão, a determinação, por exemplo, que nós homens não temos - e nunca tivemos. Também a capacidade de excluir o que é fundamentalmente inútil e prejudicial.

Este momento histórico é definido, de fato, muito mais do que outros, pela comparação entre o princípio feminino e o princípio masculino (onde o último emerge mais agressivamente, a ação subterrânea do primeiro é mais profunda). E isso surge de uma maneira delicada e tocante também a partir das frases, das memórias, dos discursos dos viúvos - de sua relação, que não termina, que continua além da morte, com as companheiras.

Então, se tentássemos definir as características femininas (que não dizem respeito apenas ao gênero, mas à estrutura do pensamento e do espaço vital) em relação às masculinas, isso poderia trazer à tona algo do tipo:

Tecer - costurar - esboçar - construir - armazenar - preservar VS. disputar - lutar - colidir - esmagar - dominar - oprimir.

Indefinição - imersão - ocultação - fusão - empatia - conexão VS definição - emersão - aparência - contraposição - alienação - dissociação.

Conservar - embalar - abraçar - amar - proteger - apoiar VS. quebrar - rasgar - separar - dividir - abandonar - perder.

*

Outro aspecto que qualifica a dimensão contemporânea é que esta é uma era de terror - mas também de magia. Para descobrir - e praticar – a magia precisamos enfrentar o medo do desconhecido, querer se abandonar ao inesperado e aceitar tudo o que suceder; entender em profundidade que tudo o que acontece com você - cada fragmento único - é a sua existência.

É isso que Laura Cionci tenta demonstrar com o seu trabalho, com todo o seu trabalho. Uma espécie de experiência diferente. Existem os limites, as margens, as barreiras - e então, de repente, elas colapsam, se dissolvem, não existem mais. Esse “contato” com o exterior, com o outro, é certamente também assustador e traumático porque sempre discute o eu; assim, dissolve-se não apenas a fronteira e a margem, mas o eu: e ainda essa consciência e essa prática são necessárias precisamente como formas de criar outro plano sobre o qual existir. Como escreve Anaïs Nin: “O território de uma mulher é aquele que comparece inviolado pelo desejo direto do homem. O homem ataca o centro vital. A mulher preenche a circunferência” (em Diario I, Bompiani 2016, página 252).

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